Autonomia e liberdade do médico a ensejar a renúncia do atendimento ao paciente em observância aos preceitos da perda da confiança: dilema ético #DireitoMédico

Diversos são os eventos que ocorrem e decorrem do cotidiano do profissional de medicina a ensejar situações em que o(a) médico(a) entre em colisão ou conflito de interesses com o(a) paciente, momento em que, a depender do caso concreto, força tal profissional da saúde exercer de forma mais acentuadamente as prerrogativa funcionais a que tem direito.

 

A despeito do inc. VII do Capítulo I (Princípios Fundamentais) do CEM, o(a) médico(a) exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado(a) a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro(a) médico(a), em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do(a) paciente; tal garantia faz coro à liberdade profissional, como sucede o inc. VIII do mesmo diploma.

 

Inobstante o CEM reforçar o comprometimento do médico com a boa prática da medicina em preservação à saúde do paciente, o que, em tese, fictamente limitaria ou mitigaria a autonomia e liberdade de distinto profissional, há conceber que a relação jurídica existente entre o paciente e o médico tem como pilar a confiança reciproca, cujo sigilo profissional é preceito de ordem pública, e ante o perecimento de tal há substancial afetação à consecução do diagnóstico médico e, porventura, eventual tratamento clínico por parte do paciente, devendo, pois, em estreita observância aos preceitos éticos, extinguir-se a relação médico-paciente em decorrência da perda da confiança.

 

A confiança entre médico-paciente só pode existir quando alicerçadas nas normas morais a que deve estar vinculado o médico.

 

Em abono dessa disposição, mister se faz trazer à colação o posicionamento do egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar caso concreto, externou que a relação entre a profissional liberal e o paciente tem natureza personalíssima, logo, possui como liame a confiança estabelecida entre eles, como se observa da ementa a seguir transcrita:

 

“Os serviços prestados pelos profissionais liberais, portanto, são regulados pelas disposições do Código de Defesa do Consumidor. A única ressalva que a legislação consumerista faz em relação aos serviços desta natureza encontra-se no § 4º do artigo 14. É dizer: a legislação de consumo abrange os serviços prestados pelos profissionais liberais; apenas os exclui da responsabilidade objetiva. É de se observar que esse tratamento diferenciado dispensado aos profissionais liberais, incluindo os médicos, deriva da natureza intuitu personae dos serviços prestados e da confiança neles depositada pelo cliente.” (REsp 731.078/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/12/2005, DJ 13/02/2006, p. 799)

 

Desse modo, a manifestação livre do médico no sentido de não se sentir em condições de realizar o procedimento cirúrgico diante do rompimento da relação de confiança entre médico e paciente não pode ser desconsiderada.

 

Tal postura, inclusive, está autorizada pelo CEM, a despeito do inc. VII do Capítulo I, em combinação com o art. 33 do Capítulo V, art. 33. Não bastasse isso, o § 1° do art. 36 do Capítulo V, prescreve que “ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.”

 

A tese defendida, de extinção da relação médico-paciente em decorrência da perda da confiança reciproca, apresenta-se agasalhada na jurisprudência sedimentada pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espirito Santo, como se denota da ementa abaixo transcrita:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTEMPESTIVIDADE. AFASTADA. QUEBRA DE CONFIANÇA NA RELAÇÃO MÉDICO E PACIENTE. DESONERAÇÃO DO PROFISSIONAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO. I – A afirmação da agravada segundo a qual o agravante teria sido intimado em data anterior aquela constante do mandado de citação e intimação não se confirma por documentos oficiais e hábeis a iniciar a contagem de prazo. II – O Superior Tribunal de Justiça já externou que a relação entre a profissional liberal e o paciente tem natureza personalíssima, logo, possui como liame a confiança estabelecida entre eles; com isso, no momento processual da demanda na origem e sem urgência emergência para realização da cirurgia, não é crível exigir do médico que relata quebra de confiança, a efetivação deste procedimento de forma compulsiva quando ausente comprovação de singularidade no seu desempenho. III Agravo de instrumento conhecido e provido. Agravo interno prejudicado. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Desembargadores da egrégia Primeira Câmara Cível, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao agravo de instrumento e reputar prejudicado o agravo interno, nos termos do voto do Relator. Vitória/ES, de de 2017. PRESIDENTE RELATOR (TJES, Classe: Agravo de Instrumento, 048179000236, Relator: JORGE HENRIQUE VALLE DOS SANTOS – Relator Substituto: GETULIO MARCOS PEREIRA NEVES, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 31/10/2017, Data da Publicação no Diário: 08/11/2017)

 

Conclui-se, portanto, que, uma vez comprovada a perda da confiança, à exegese da autônima e liberdade do profissional médico, a renúncia ao atendimento é medida que se impõe ao caso prático, sem, contudo, tal médico ferir outros preceitos éticos e deontológicos.

 

Publicado em 31 de agosto de 2021.

 

RUMMENIGGE CORDOVIL GRANGEIRO | Advogado inscrito na Seccional Amazonense da Ordem dos Advogados do Brasil sob o nº 5.810 | Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes | Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Damásio | Pós-graduado em Direito Médico e Hospitalar pelo Centro Universitário União das Américas | Despachante Aduaneiro inscrito na Secretaria da Receita Federal do Brasil sob o registro nº 2D/00.444 da 2ª Região Fiscal | Livre docente | grangeiro@grangeiro.adv.br | https://grangeiro.adv.br/